Médica Dentista
HPA Magazine 24 // 2025
Cronologia da dentição decídua
A erupção da dentição decídua tem início, em média, por volta dos seis meses de idade, habitualmente com os incisivos centrais inferiores, e completa-se por volta dos dois anos e meio (30meses) com a erupção dos segundos molares superiores. Esta dentição é composta por um total de 20 dentes: 8 incisivos, 4 caninos e 8 molares. A sua esfoliação fisiológica (queda) ocorre geralmente entre os 5 e estende-se até aos 13 anos, período em que ocorre a substituição gradual pelos dentes permanentes. Durante este intervalo, verifica-se a presença simultânea de dentes decíduos e permanentes – a chamada dentição mista – uma fase particularmente sensível e crítica para o desenvolvimento craniofacial, em que se consolidam padrões oclusais e de crescimento maxilofacial.
Funções essenciais dos dentes de leite
• Mastigação eficiente, imprescindível à adequada digestão e nutrição equilibrada;
• Desenvolvimento da fala e articulação correta dos sons;
• Manutenção da estética e autoestima da criança, fatores relevantes com impacto no processo de socialização;
• Preservação do espaço dentário necessário para a correta orientação da erupção dos dentes permanentes;
• Crescimento funcional e harmonioso dos maxilares e estruturas faciais.
Alterações precoces na integridade ou presença destes dentes podem desencadear consequências a longo prazo, como disfunções oclusais, necessidades ortodônticas ou distúrbios alimentares e emocionais.
Cáries dentárias na infância
A cárie dentária infantil é uma das patologias mais comuns em idade pediátrica, em que a adesão bacteriana ao esmalte e a formação de biofilme contribuem para a persistência do processo cariogénico. Este, é causado pela ação de ácidos produzidos pelas bactérias da cavidade oral que metabolizam os açúcares presentes na dieta, levando assim à desmineralização do esmalte e, se não tratado, à destruição progressiva do dente.
Nos dentes decíduos, a progressão da lesão cariosa é geralmente mais acelerada devido à menor espessura das estruturas mineralizadas (esmalte e dentina) e à proximidade da câmara pulpar (nervo), aumentando o risco de envolvimento pulpar.
Principais fatores associados ao desenvolvimento de cárie em crianças
• Higiene oral inadequada ou inexistente;
• Uso inadequado de pastas dentífricas (sem flúor);
• Dieta rica em açúcares;
• Uso prolongado de biberões com líquidos açucarados, especialmente durante a noite;
• Falta de acompanhamento odontológico regular;
• Fatores socioeconómicos e educacionais.
Consequências do não tratamento da cárie
A não intervenção em casos de cárie em dentes decíduos pode culminar em:
• Dor: com impacto direto na qualidade de vida (alimentação, sono, desempenho escolar);
• Infeções graves: cáries não tratadas podem evoluir para infeções que afetam os tecidos moles da face (celulites), com risco de disseminação sistémica;
• Comprometimento nutricional: decorrente da dor ao mastigar, o que leva muitas crianças a evitarem alimentos duros ou saudáveis, como frutas e vegetais, resultando numa dieta alimentar pobre;
• Problemas na fala, na socialização e autoestima: a perda prematura de dentes pode afetar a dicção e causar impacto emocional e psicológico;
• Risco aumentado de cáries futuras: crianças com cáries nos dentes de leite têm maior probabilidade de desenvolver cáries na dentição permanente, o que justifica estratégias de vigilância e intervenção;
• Distúrbios no desenvolvimento da dentição permanente, incluindo retenções, alterações na correta posição dentária e perdas de espaço;
• Custos clínicos e sociais a longo prazo: a não intervenção pode levar a tratamentos mais complexos e a reabilitações dispendiosas no futuro, incluindo extrações, mantenedores de espaço ou ortodontia corretiva.
Porque se devem tratar cáries em dentes de leite?
Persiste ainda uma ideia errada entre muitos cuidadores: a de que, por serem substituídos, os dentes de leite não necessitam de cuidados ou tratamento. Contudo, as cáries não tratadas podem causar dor, infeções, dificuldade na mastigação e alterações no desenvolvimento da fala. Além disso, podem afetar negativamente a formação dos dentes permanentes e provocar alterações no espaço dentário, predispondo a problemas ortodônticos. Deste modo, as cáries nesta fase devem ser encaradas com seriedade, devido à sua progressão rápida e aos impactos negativos a curto e longo prazo, podendo assim prevenir complicações futuras e promover hábitos de saúde oral que se prolongam por toda a vida.
A relevância da intervenção antecipada
O tratamento de lesões cariosas em dentes decíduos tem uma abordagem terapêutica, preventiva e educativa. A intervenção precoce visa preservar as funções orais, controlar o foco infecioso, manter a cronologia eruptiva e reduzir a ansiedade associada ao tratamento dentário.
A American Academy of Pediatric Dentistry (AAPD) e a Direção-Geral da Saúde (DGS) recomendam que a primeira consulta odontopediátrica deva ocorrer até ao primeiro ano de vida.
O acompanhamento clínico desde o primeiro ano de vida permite:
• Detetar qualquer condição ou hábito que possa prejudicar a saúde oral da criança;
• Esclarecer as fases de erupção dentária e os sintomas que a criança pode experienciar;
• Avaliar e controlar fatores de risco;
• Explicar e aplicar medidas preventivas;
• Desenvolver uma relação positiva entre a criança e o profissional de saúde oral;
• Reduzir o trauma associado ao tratamento;
• Promover hábitos de alimentação e higiene oral consistentes;
• Tratamento de cáries consoante a indicação do Médico Dentista, preservando assim as funções orais, prevenção de infeções e contribuindo para o bem-estar geral da criança.
Prevenção de cáries em idade pediátrica
A prevenção de cáries dentárias deve ser iniciada desde o nascimento, com foco na educação parental e controlo ambiental. A motivação familiar, aliada a políticas públicas de saúde oral infantil, é crucial para o sucesso da prevenção. Existem algumas estratégias fundamentais que podem ser implementadas desde cedo, tais como:
• Educação parental: deve-se promover o conhecimento sobre a saúde oral a partir da gravidez visto que o microbioma oral da criança é influenciado desde cedo e a transmissão vertical (mãe-filho) é uma via frequente de colonização de bactérias, especialmente em contextos de má higiene oral e alimentação rica em açúcares;
• Higiene oral desde o nascimento: com a limpeza gengival com gaze antes da erupção e escovagem com pasta fluoretada após o aparecimento dos primeiros dentes;
• Controlo dietético e redução de açúcares: limitar o consumo de alimentos e bebidas açucaradas, especialmente entre refeições;
• Promoção do uso de flúor: uso regular de dentífricos fluoretados com orientação profissional quanto à concentração e frequência;
• Follow-up regular: primeira consulta até ao primeiro ano de vida e controlo periódico subsequente ajustado ao risco de cárie da criança.
Tratar é também educar
A abordagem clínica da cárie em dentes decíduos exige um olhar integrado e multidisciplinar. Mais do que tratar lesões, é essencial atuar preventivamente e educar para a saúde. Os dentes de leite são fundamentais para o crescimento equilibrado da criança e devem ser preservados até à sua esfoliação fisiológica.
A sua negligência compromete a saúde oral futura e representa uma oportunidade perdida na promoção de hábitos saudáveis.
O tratamento da cárie na infância não se limita à resolução da lesão. É também uma oportunidade de educar as crianças e os cuidadores, implementar hábitos saudáveis e estabelecer uma relação positiva da criança com o dentista. A prevenção de episódios de dor e trauma favorece atitudes mais colaborativas no futuro e contribui para a manutenção da saúde oral ao longo da vida.
Deve-se frisar que a primeira consulta da criança não deve ser de carácter de urgência/dor, mas sim de prevenção, além de se criar laços, cria também o hábito de visitar o Médico Dentista de forma rotineira e descontraída.
Investir na saúde oral pediátrica é garantir não só um sorriso saudável, mas também um futuro com mais bem-estar, autoestima e qualidade de vida para as nossas crianças.